domingo, 20 de setembro de 2009

II

Após algum tempo, de forma curiosa, os antigos clientes retornaram e a casa estava cheia de novos degustadores. Até o designer Tosta voltou com frequência para comer massas – nhoque recheado com queijo e bife na chapa (ou escalopes, nos restaurantes chiques). Após as refeições, a mulher dele agora toma dois copos de café. Nos dias que se seguiram ouviu-se os habitués interrogarem por notícias de Miguel. A resposta era sempre a de que ele estava bem, no lar, mas fora de contato. Especulou-se que ele havia tirado férias e com o passar dos dias de que estava trabalhando em outro restaurante.

Palavras afáveis de Miguel aos seus amigos frequentadores da casa sempre eram transmitidas através de Ana Paula ou Dona Sônia. Havia a afirmação do próprio, segundo elas, de que uma visita à cantina seria realizada em breve. A data seria o dia 08 de maio, uma sexta-feira, quando ele iria encontrar-se com os amigos para comemorar o seu aniversário.

– Disse que virá se despedir e matar as saudades – enfatizou sorridente e com a simpatia de sempre a mulher que, antes atrás do balcão, agora pulara para a frente das mesas também no auxílio ao novo garçom que ela trata delicadamente por Lú.

Apesar da expectativa, ele não foi. Miguel não apareceu. Mas Duda, o melhor amigo de Miguel, estava lá com sua turma. Compraram até bolo de confeitaria. Fizeram a tradicional algazarra, alguém sugeriu ligar para Miguel e Jacaré interveio.

– Não. Ele tem as suas razões. Vamos respeitá-lo – ponderou seriamente sem deixar brechas para comentários.

Todos ficaram quietos por alguns segundos. O barulho dissipou-se. Devem ter refletido algo sobre o colega ausente enquanto comiam. Logo alguém lançou um assunto sobre a Parada Gay, que seria realizada no mês seguinte e que atrairia 3,5 milhões de pessoas para avenida Paulista e locais adjacentes. Então, outro lembrou o show de um transformista conhecido, brotaram troças e voltaram a festar. Sobrou para o novo garçom, que não entendeu a piada.

O rapaz, por sua vez, não é palmeirense, nem faz as unhas com profissionais, é adepto ao halterofilismo. Futebol não foi um fator decisivo para a sua contratação, pois o novato torce para o Corínthians. Além disso, ele já foi pintor de paredes, trabalhou para um ex-goleiro do São Paulo Futebol Clube que atualmente passa por maus momentos financeiros e que teve que pintar a residência antes de entregar as chaves para a imobiliária.

– Lú, leva essa caixa lá para os fundos, por favor – disse Ana Paula apontando para a encomenda e mostrando-se muito mais feliz com a estrutura, cardápio, clientes e história que ela possui hoje do que com a centena de refeições e litros de cachaça vendidos em épocas como a da construção da estação Vila Madalena do Metrô.

A filha do Seu Dori e de Dona Sônia entende que a clientela muda bastante e está sujeita à sazonalidades, é despretensiosa em não aceitar o know-how que possui nas mãos quando a cantina está prestes a completar 30 anos, mas enxerga o quanto vai enriquecer a tradição culinária da sua família ao prestar vestibular para o curso de Nutrição. É que nesse momento, Ana Paula estará se preparando para confrontar a construção de outra grande obra de acordo com a Época Negócios:

O novo shopping será construído em um terreno de 3.800 metros quadrados próximo à estação de metrô Vila Madalena, na esquina da av. Heitor Penteado com rua Marinho Falcão. Deve ter cinco pavimentos e três subsolos, somando 23 mil metros quadrados de área construída. O projeto prevê uma praça cultural e ações sustentáveis para reuso de água e utilização de iluminação natural.

Assim como Miguel, Lú também vive de intervalos na cantina, contudo, deve estar presente durante a construção do shopping center. Apesar de não se identificar em nada com o antigo mercadinho do Seu Dori, curiosamente, o novo garçom despertou mais interesse agora nos clientes pela história do lugar do que o próprio Miguel. Não demorou muito para que a casa voltasse a conviver com a lotação máxima, com gente ficando de fora e outros esperando um santocristo saciar-se e ir embora. As mulheres até se atrevem a sentar ao sol para que o novato, assim que liberar uma mesa em outro ponto, possa conduzi-las gentilmente ao lugar mais adequado da cantina. Agora, fazem até questão que o garçom escolha o lugar.

O fato é que naquela manhã de segunda-feira todos os fregueses que chegavam à cantina notavam a ausência de Lú.

– Dor de dente, o ciso inflamado – informou Ana Paula.

Na manhã seguinte lá estava ele novamente atendendo, carregando engradados para o depósito no segundo andar, subindo e descendo com exubera disposição a escada na lateral externa da cantina.

Um músico de jazz o apelidou mais tarde de Massaranduba. Lú nunca demonstrou melancolia, nem comentou sobre suas convicções pessoais. Não usa mocassim e não está prestes a se aposentar. Mas um dia ou outro vai decidir também apostar em outro rumo. Hoje, veste calça jeans, tênis New Balance, boné, avental de algodão e camiseta cinza.

E no seu peito, num reforço descomunal de publicidade, lê-se impresso em tinta branca: Adidas.

FIM

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