domingo, 20 de setembro de 2009

O Novato

I

Um dia Miguel estava cabisbaixo. Não era resfriado, tampouco noite mal-dormida. O Palmeiras estava razoavelmente bem, melhor ainda a política nacional da qual ele nunca reclamou ou fez alarde. Atendia todos com a mesma atenção, apesar de emitir um sorriso frio, triste e sem graça. Mexia-se pouco, não falava mais o pedido em voz alta e, para isso, deslocava-se até a cozinha para anunciá-lo. Não havia nenhum de seus amigos entre os clientes na cantina e suas reações alteraram-se quando um homem cheirando a álcool quis almoçar e beber uma cerveja.

– Não vendemos bebidas alcoólicas no almoço – enfatizou, orientando-o a procurar outros lugares nas proximidades.

Enquanto tomava o solzinho na calçada não fitou as morenas do salão de beleza ao lado, permaneceu com o olhar melancólico e distante, parecia sentir uma angústia enorme.

Há alguns dias Miguel já manifestava certa nostalgia, comentou a respeito da mudança de vida que preparava, falou em estar mais perto da família. Tinha planos. Olhou para a fotografia do amigo Dorival Seriacopi sorrindo, com os braços abertos e vestindo a camisa do Palmeiras, pendurada no balcão de madeira, e sentiu além de uma fraterna lembrança um enorme calafrio.

O Sr. Dori morreu no dia 28 de novembro de 2004, aos 63 anos, depois de trocar socos com um flamenguista abusado, durante um churrasco em Campinas, no interior de São Paulo. Era domingo, jogo do Campeonato Brasileiro e de uma simples discussão chegaram-se às vias de fato. O coração dele não resistiu. Seriacopi trabalhou até os últimos momentos na cantina, lutou até o último minuto pelo Palmeiras e brigou o quanto pode contra os seus próprios sentimentos – não se medicava corretamente, nem aceitava o quanto era importante tratar os nervos.

Miguel tinha duas escolhas: seguir – guardadas as devidas proporções – o mesmo caminho ou então jogar a toalha e pensar numa aposentadoria apática como qualquer outra. Resistir só o deixaria mais próximo daquilo que é a única certeza de que todos nós temos na vida. Não que ele não gostasse dos netos, por quem é apaixonado, mas sabia que trocar a cantina pelos passeios com as crianças na calçada e nas praças implicava em deixar para trás toda uma história de benfazejos ao futebol, à gula e aos amigos.

Naquele certo momento, Miguel não tinha ninguém ao seu lado. O seu exército dera baixa. Mesmo vitorioso foi difícil aceitar a realidade nua e crua que tornava-se tão clara pela primeira vez em toda sua existência: a guerra acabou. Era hora de partir para a casa, abraçar a mulher, rever os filhos, cuidar dos netos, ir à padaria sem compromisso de horário e, o mais importante, ser atendido por outrem. A volta para a casa depois da guerra, porém, muitas vezes é marcada por um lar transformado, completamente diferente daquele quadro desenhado na memória, isso quando ainda existe um lar. Miguel deu sorte: o dever cumprido e a família estão em ordem. Sua família, aliás, também deu sorte. Depois da guerra, muitas vezes não ocorre a volta para a casa. Miguel está triste, mas está inteiro, é uma questão de tempo para se recompor.

Nada mais natural, diriam os melhores especialistas – tudo bem, um clínico geral palmeirense, como obviamente optaria o teimoso Miguel –, para quem labutou durante décadas no front de combate.

Ao concentrar o olhar para o chão ele imaginou que no momento em que pendurar o mocassim, estará calçando definitivamente as suas sandálias franciscanas de couro. Sabia que dali há poucos dias iria se despregar, em prática, de suas histórias de quando tinha apenas 11 anos e acordava todos os dias às 3h da madrugada para trabalhar na padaria do pai. Estava prestes a deixar para trás anos e anos como o ex-taxista que mais se destacava na praça no meticuloso cuidado com seu automóvel. Sabia que dali há poucos dias iria olhar de uma forma diferente para a segunda maior cidade do mundo em número de restaurantes. A São Paulo de 1.500 pizzarias e seu 1 milhão de pizzas diário, ou 720 por minuto; ou então, a metrópole das 3.200 padarias e seus 10,4 milhões de pãezinhos por dia, ou 7.200 unidades a cada 60 segundos. Não bastasse, como aposentado, vai usufruir com parcimônia dos mais de dois mil deliveries existentes à sua disposição e encomendar por telefone desde burritos à yakisobas.

É que o comportamento de Miguel indicava uma futura reclusão. Um sumiço sorrateiro que inspiraria todo tipo de dedução, entre as quais a de que estaria atuando como zelador do edifício onde reside. Adiante, informações desencontradas haveriam de surgir a respeito do seu paradeiro.

Antes disso, quando um novo cliente perguntou se era ele o dono da cantina, Miguel respondeu que não, apontou para uma foto na parede com a imagem de um homem com mais de 30 anos – o ex-marido de Ana Paula – abraçado à celebridades como Ronaldinho Gaúcho, e explicou mais uma vez a história do lugar.

No entanto, dessa vez, ele discorreu penoso sobre o assunto alegando que aquelas fotos – a exemplo de uma com o jornalista Maurício Kubrusly – eram coisa do passado, de quando o fundador da cantina era uma pessoa influente no clube paulista e que, depois de sua morte, todos aqueles famosos que lá o prestigiavam agora não frequentavam mais a casa como antigamente.

Disse tudo isso nervoso, reclamando e resmungando em retirada. Em plena sexta-feira. Uma sexta-feira, porém, diferente. Um dia em que Miguel não tocou mais como antes em assuntos sobre os treinos do Palmeiras, dos quais deve ter perdido também inúmeros privilégios. Outro dia, outro cosmo. Nem quinta-feira assistiu semelhante ingresia. A areia escorria entre os seus dedos e sua insurreição, uma vez que era um bravo por nascença, não foi capaz de vencer a força inexorável e impiedosa do tempo.

Esse mesmo tempo que presenteou-lhe com rugas, uma leve corcunda e com perdas irreparáveis entre as quais a do seu universo. E a tão desejada vitalidade era agora quem o obrigava a refletir sobre o espaço. Um espaço que não era mais o seu. Nesses últimos dias, Miguel estava um pouco confuso. Um freguês pediu contra-filé com salada, ele trouxe filé de frango com fritas.

– Pedimos limonada, o senhor disse que acabou e que só tinha suco de laranja. Esse pessoal da mesa aqui do lado acabou de chegar, pediu limonada e já foi servido. E a gente nem viu o suco de laranja ainda! Afinal tem limonada ou não? – reclamou outro casal.

Um homem e duas mulheres que esperavam ser atendidos preferiram, diante da demora, atravessar a rua e entrar no restaurante de espetinhos de carne em frente à cantina.

A casa estava um pouco mais vazia do que o costume e quem chegou para almoçar depois das 14h30, ou seja, faltando meia-hora para o encerramento do expediente matutino, viu um Miguel ainda mais arreado e desta vez de uma forma como nunca ele havia se exposto antes: sentado sozinho na mesa dos fundos alimentando-se de cabeça baixa.

Quando um freguês habitual entrou desculpando-se pelo horário e perguntando se ainda havia tempo para almoçar notou aquela cena exclusiva, cumprimentou Miguel – que o respondeu somente com um levantar de olhos e balançar de cabeça tímidos – e percebeu algo estranho no ar.

Era tamanha a tristeza que, por coincidência ou não, o aparelho de som não estava sintonizado numa rádio de música pop ou sertaneja: tocou uma coletânea inteira com o lado mais romântico de Vanessa Da Mata. Ele não dava caras de ser fã da extravagante morena. Por outro lado, independente do estilo que saísse daquelas caixas de som naquele instante, não haveria a mínima condição de assimilá-los. Nem mesmo o Roberto Carlos dos seus bons tempos conseguiria retirá-lo do transe na qual permanecia submerso.

Era bem próximo do que acontece dentro dos frigoríficos com os animais – bois, no caso – que estão prestes a serem abatidos. Tudo começa na fazenda, com a identificação dos melhores exemplares para a engorda que, desde cedo, são encaminhados para os pastos mais fartos de capim. Ao alcançarem idade e peso ideais para a indústria, próximo aos 3 anos e às 18 arrobas em média, são colocados em duas dezenas num caminhão cuja carroceria é uma espécie de gaiola. Assim que o veículo se aproxima do abatedouro, o cheiro da fumaça – muito semelhante ao do curtume – atiça os animais e então tem início um coral de berros e urros (ou sussurros) que toma conta de toda a área externa do frigorífico – local onde ainda se encontram vivos os bois. Numa baia, curral, ou piquete, geralmente cimentado, cercado com arame e barras de metal, os animais passam por quarentena tendo em vista a dieta necessária pré-abate e o atendimento às regras sanitárias. Dali em diante, um corredor de aproximadamente 200 metros os separam das últimas ruminações. Quando pegam esse caminho chegam até o brete – armadilha que prende o animal – que já está localizado no interior do frigorífico. Lá, imobilizados, um algoz vestindo botas, roupa e chapéu brancos aponta uma pistola prateada (presa por um cabo que a liga num cilindro de ar comprimido) no chanfro do animal e então dispara um único tiro: seco e preciso. Nem mal ecoa o estampido, lá está uma carcaça a ser suspensa por outro homem igualmente todo de branco que a dependura auxiliado por cabos e correntes num gancho. Suspensa, corre por tirolesa até chegar às mãos de outros homens (os magarefes) também de branco que ostentam enormes e afiadas facas de diversos tipos e tamanhos. São instrumentos que oscilam entre a pele, a carne e os ossos dos animais, depois que riscam a lima que aprimora o gume para a carnificina. Mas antes de serem retalhados e de se transformarem em peças, no momento em que se encontram no corredor, antes de chegarem ao brete, os animais invariavelmente soltam o último berro, aquele som angustiante e derradeiro, o último soluço. Apesar da agressividade de uma cena usual dentro dos abatedouros, é nos instantes anteriores ao sacrifício que se presencia o momento mais triste desses animais cuja vida é uma contagem regressiva pontual desde o nascimento até o instante em que chegam ao prato do consumidor.

Esse era o momento de Miguel. Apresentava-se na condição pré-abate, pronto para encerrar sua trajetória de cumprimentos, sugestões, opiniões e, é óbvio, do tradicional berro para a cozinha. Pela primeira vez, ele virava-se de costas por tão longo tempo para os fornos, freezers e fogões. Comia bife com ovo, fritas, arroz e feijão.

Era sexta-feira, estrogonofe de carne o prato do dia. Ao levantar-se e despedir-se dos presentes o freguês retardatário sentiu-se quase certo de que não veria mais o sugestivo garçom. Sábado a cantina não abriu. E não abriria mais nos sábados seguintes, nem aos feriados. Fechada, o grafite de um rosto feminino no melhor street art característico da região ilustrava a porta de aço galvanizado na fachada.

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