domingo, 20 de setembro de 2009

O Garçom

I

O fato é que naquela manhã de segunda-feira os primeiros fregueses que chegavam à cantina notavam a ausência de Miguel.

Agora um jovem moreno, forte, másculo e corpanzil, um tanto desatento, atendia e servia em voz baixa e suave – contrariando seu aspecto físico – as mesas compostas no simplório e aconchegante cubículo medindo algo próximo a 20 metros quadrados, encrustado no pé de uma rua íngreme e histórica da capital paulista. Precisamente no final de uma das vias, não principais, de maior extensão da Zona Oeste.

O mês de maio estava prestes a começar. O frio atrasou. Ainda nas semanas anteriores em diversos momentos a freguesia – nova, em particular – confundiu Miguel, em ato contumaz, com o proprietário da cantina.

– O Sr. é o dono? – perguntavam-lhe com frequência quem por ali adentrava a primeira vez. Ao que ele respondia em negativa para depois contar entusiasmado e nostálgico parte da história do estabelecimento, reforçando em demasia o que era aparente e visível na decoração.

Falava o que podia e o tempo permitia, estava treinado em lidar com essa situação, e parecia não se importar nem um pouco com a confusão de propriedades.

Talvez fossem as mesas e cadeiras da marca Rubim, modelo diamante, o forro ora xadrez, riscado ou desenhado de rosas, as referências à Itália e Portugal, o bar de madeira de lei com taças e copos suspensos, algumas garrafas de uísque, vinho, barris de cinco litros de cerveja importada e outras bebidas, ou o clima altamente familiar e amistoso.

Tudo aquilo era a cara daquele homem que rodopiava de um lado para o outro lançando cumprimentos, sugestões, opiniões e, é óbvio, o tradicional berro em direção à cozinha ao informar o pedido do cliente.

– Um bife à parmegiana, Dona Sônia! – esbravejava sem melindres com suas cordas vocais fracas e arranhadas.
– Mais um ovo frito e um suco de laranja! – assinalava como sempre seus adendos sem deixar de corrigir às pressas alguns pormenores.
– O suco de laranja é sem açúcar, sem açúcar, Dona Sônia!

O certificado com o Título de Fundo Social do Palmeiras, de 1984, e o quadro com a fotografia oficial do time da Portuguesa, em 1930, ambos na parede de azulejos bege, serviriam perfeitamente de moldura para o retrato vivo de Miguel, outra figura rara dentro das grandes cidades, onde o excesso de culturas muitas vezes dá conta do sumiço repentino de personagens marcantes de seu berço. Seres em extinção.

Semelhantes à foto 3 x 4, preto e branco, que estampa a Carteira de Trabalho do galante. A foto de um moço que ergueu a sua primeira bandeja, ainda desajustado, numa época em que São Paulo não tinha 12,5 mil restaurantes, 52 tipos de cozinhas, 500 churrascarias e 15 mil bares – de acordo com dados do Convention and Visitors Bureau – onde trabalham os, aproximadamente, 300 mil garçons, cozinheiros, caixas e outros profissionais.

Tudo era diferente. São Paulo também não era a cidade que recebe 10 milhões de visitantes ao ano, nem tampouco a capital sul-americana de feiras de negócios com seus 90 mil eventos anuais ou, então, um a cada 6 minutos. Não existiam ainda as 222 redes de lanchonetes do município, com seus 30 mil empregados, nem a categoria emergente no mercado de garçons: os trabalhadores de fast-foods. Foi um tempo em que o Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Bares e Lanchonetes, o Sinthoresp, era a única entidade representante da classe.

A seleção natural no ambiente dos estabelecimentos gastronômicos foi implacável. Acompanhou diversas mudanças e transformações no mundo real e metafísico. Uma interferência contínua do acaso que determinou a sobrevivência de poucos lugares junto ao desaparecimento de muitos outros. Locais antigos, tradicionais, hypes ou sob nova direção que, diferentes entre si, guardam semelhanças extrínsecas no quesito empregador atual de uma dezena de pessoas a disputar cachês, extras e ascensão. Só isso.

Miguel não, ele reina absoluto. Mesmo contando com a ajuda de terceiros nos momentos de pico, é quem cuida, na condição intransponível de primeira pessoa, do atendimento. E não recebe, evidentemente, gorjetas por isso. E talvez nem concordasse meses depois com a decisão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara que aprovou um projeto regulamentando os 10% de gorjeta.

– Tem o que está no cardápio – respondeu ao cliente que insistiu em perguntar sobre o agnolone com bife na chapa (ou escalopes, nos restaurantes chiques) que comera dias atrás e que não constava no menu.

Quem trabalha no setor sabe o que funciona e o que emperra. Miguel é um desses. E tem consciência de que o certo é trabalhar.

O referido projeto é mais uma das tantas iniciativas que vão do nada a lugar algum. Ao taxar os 10% para recolher, em contrapartida, os encargos sociais e previdenciários dos empregados de bares, hotéis, restaurantes, lanchonetes e similares, a proposta afrouxa os diversos elos da corrente. Onera o empregador, estabelece a criação de uma comissão de empregados para efeito fiscalizador, propõe a divisão da graça entre todos os funcionários, além de outros méritos que por si só ganham o desprezo dos supostos beneficiados. Em outras palavras diminui a gorjeta individual de 10% para 8% e impele aquele que honrosamente defende o seu espaço a distribuir os louros das próprias conquistas.

– E o Vanderlei? Não devia ter escalado aquele lateral! – diz Miguel com veemência para deixar bem claro qual o tipo de discussão lhe interessa.

É fácil entender porque ele é indiferente em relação aos assuntos de política trabalhista dos 10%. A falta da gratificação oficial não o faz perder a classe. Não é com o agrado que ele faz o hábito.

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