domingo, 20 de setembro de 2009

II

Em Miguel, chamam atenção as unhas bem cuidadas, de quem mantém presença regular na manicure, e também os cabelos grisalhos bem cortados, penteados para trás com gel, e a impregnante loção pós-barba cheirando a patchuli característica dos fins de semana.

A toalha – na maior das verdades, um pano de algodão – com a qual limpava as mesas e protegia as mãos do calor de pratos e panelas flamejantes, dormitava sobre o ombro direito e de lá saía para retornar em movimentos idênticos aos do nunchaku em ação nas quais constatava-se a nítida influência dos filmes de Bruce Lee, a quem Miguel já havia direcionado comentários de admiração num bate-papo informal. Apesar de estar calcado em origem e tradição luso-italiana, assistiu no cinema a estreia de Operação Dragão, em 1975, pegou sessões duplas e durante boas semanas retornava às salas para conferir, mais uma vez, os golpes do baixinho encrenqueiro. O lutador chinês de kung-fu foi um dos seus ídolos na juventude.

Devoção que só não alçou maiores proporções porque o seu coração estava tomado em completude por outra paixão: o futebol, logo o time da rua Turiassú. Entre as olivas e o macarrão, optou pelo último, no que diz respeito ao trato com a pelota entre quatro linhas. Mas não existia vivalma que ousasse falar mal em sua presença da Associação Portuguesa de Desportos.

Sincrético futebolístico, eis os meandros de sua fé.

– Um nhoque, Dona Sônia! Ao sugo, Dona Sônia, ao sugo!

Miguel apertou por muitos anos a cara atrás dos alambrados do Palestra Itália – o mesmo estádio cuja imagem amarelada de 1942 repousa na parede da cantina onde está o caixa e onde também está o cartaz antigo com a imagem de Jesus Cristo em ilusão de ótica. Acompanhou treinos, jogos e eventos, ao lado de amigos e de companheiros antigos, gente que viveu glórias e derrotas pela equipe alviverde. Inclusive, ele reside exatamente no meio do caminho entre a arena que pertence à sociedade esportiva do seu coração e o local diário de trabalho. Vive religiosamente nas imediações. É filho de Perdizes.

Sua autoridade tem base nesse histórico. Por isso, sente ter recebido, em analogia, o diploma (sem um único grama de celulose ou de qualquer outra matéria concreta) que lhe garante descrever um pouco de cada fotografia afixada, entre outras, nos cinco painéis enfileirados à esquerda de quem adentra a cantina. Ele pode não ter sido o protagonista em pose, mas com certeza testemunhou in loco o momento em que se consumou boa parte daqueles registros fotográficos.

Os mesmos registros que deixam curiosos os que sentam em uma das quinze mesas rodeadas pelo glorioso arquivo.

– Olha só, é o Márcio Garcia, o Bahuan da novela! – exclamou alegre a garota ao apontar com o dedo fura-bolo para a fotografia do protagonista principal do famoso folhetim televisivo das 21.
– Esse aqui é o Felipe Massa. Mas ele não é são-paulino? – comenta e inquire o amigo junto à mesa.

Agora, depois de seis décadas de existência, Miguel já está apto também a se tornar história. Tamanha identificação com o ofício não haveria de ser resumida em apenas mera passagem como garçom. Mas, se nenhum pixel dos milhões expostos ao seu redor lhe pertencia, um só único que fosse, melhor seria concorrer ao vivo e em cores, em carne e osso, com todo aquele álbum de imagens. Miguel aplica, mesmo inconscientemente, a máxima: “melhor do que viver a história é fazer a história”. Sendo assim, não perde tempo, trabalha como se estivesse a deslizar num salão em baile dançando Besame Mucho, é o dono da pista.

Nos pés, o mocassim. Nos passos, a cadência, uma ginga cujo balé meticuloso não deixa transparecer quaisquer resquícios de um cansaço inaceitável que seja. Tenta não enxergar a própria corcunda avançar proporcional ao recuo da audição, perda que o faz repetir intermitente a interjeição monossilábica: hein!

É forte, sobretudo. A convalescença é um traço que não exibe. Muito ao contrário. Nem se abala ou enrubesce ao ver um cliente lendo o recado – escrito num guardanapo e preso com tachinhas num painel – assinado por João Cruz, o Zorro: “Poucos sabem trabalhar como você, no bairro”.

Datado de 28 de agosto de 1994, a homenagem é à Dorival Seriacopi, este sim o dono da cantina.

Incólume, Miguel ostenta acima dos mesmos lábios que um dia beijaram a taça de campeão do Paulista, em 1976, o típico bigodinho francês, alinhado, com os pelos findos, ralos, brancos e marcando o que outrora fora outro traço característico de sua vaidade. No labor veste jaleco branco Oxford com um par de bolsos na parte inferior frontal e um único no peito esquerdo, onde repousa na transparência do tecido o pente fino que produz seu visual impecável durante os intervalos em que vai ao espelho do banheiro ajeitar os poucos fios que lhe restam na cabeça.

Neste bolso, num reforço descomunal de identidade, lê-se bordado em linha azul: Miguel.

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