domingo, 20 de setembro de 2009

II

Antes de dormir na noite de 15 de março de 1990, Dorival Seriacopi pensou bastante a respeito da discussão que havia ocorrido naquele dia dentro do bar/mercearia/restaurante. Depois de uma década com seu green point, por incrível que pareça, um assunto o atormentava mais do que os descaminhos do seu time do coração: a política nacional. Ele, com sua visão conservadora, preferia discutir futebol, mas um grilo não parava de azucrinar o seu ouvido. No final de 1989, logo após a vitória de Fernando Collor de Melo nas eleições presidenciais, a expectativa era de um novo país que estava finalmente a emergir, um Brasil grande, forte e competitivo, aberto para a nova economia que estava a todo vapor nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Abertura econômica era a palavra do dia. E até filósofos como o francês Michel Serres viriam a declarar que o Brasil era um dos poucos países onde o processo de globalização não causaria grande impacto na transformação cultural por se tratar de uma nação que já possuía o conceito de integração de identidades por natureza.

Seu Dorival não tinha habilidade com filosofia. Era viciado em programas esportivos do rádio e da TV. Com os olhos ainda abertos, fazia suas próprias considerações. Dormiu.

No outro dia acompanhou estarrecido pela Telefunken e junto aos seus amigos e clientes na cantina o anúncio em rede nacional, proferido pela ministra da Economia da época, Zélia Cardoso de Melo, de que o cruzado novo evaporou-se e deu vida novamente ao cruzeiro, que os preços estavam congelados e que todas contas bancárias com depósitos acima de 50 mil cruzeiros estavam com o excedente desse valor confiscados.

O Palmeiras continuava de mal a pior, catorze anos na seca. No entanto, ao contrário dos outros 139 milhões de brasileiros, naquela tarde, Seu Dori não sentiu-se desanimado. Começou a ter idéias. Ficou calado por alguns minutos justamente no tempo em que na porta da cantina, primeiro um homem, depois uma mulher, perguntou-se:

– Aqui vende almoço?

Vender, vendia, mas sua cota diária já havia se esgotado antes mesmo da 13h30. Dorival percebeu o quanto era importante direcionar o foco das suas atenções para a cantina, parecia antever que a sua preocupação-mor – o Palmeiras – seria contemplado dois anos depois com a assinatura do contrato junto à empresa italiana de laticínios Parmalat. Desta forma, pode-se afirmar que a fase Collor foi preponderante para a abertura e expansão da cozinha da casa para o público que a frequentava. Em meio à turbulência, Dorival viu oportunidades.

– Os fregueses, em 1989 e 1990, começaram a perguntar se tinha almoço. Era o dia inteiro, gente passando e perguntando – recorda Dona Sônia, ao mesmo tempo que demonstra estar sedenta por uma xícara de café.

Era um período de transição que seria superado com o impeachment do então presidente da República e coroado com a nova parceria do amado Verdão. Em 1992, os italianos implantaram um modelo diferenciado de gestão no clube e investiram pesado, entre outras coisas, na contratação dos maiores craques do futebol brasileiro da época. O placar final após oito anos ao lado dos ragazzos: onze títulos entre estaduais, nacionais e internacionais. Em detalhe, dois Campeonatos Brasileiros (1993 e 1994), uma Copa do Brasil (1998), uma Copa Mercosul (1998), uma Copa Libertadores da América (1999), dois Torneios Rio-São Paulo (1993 e 2000), três Campeonatos Paulistas (1993, 1994 e 1996) e uma Copa dos Campeões (2000).

Enquanto o Palmeiras somava uma conquista atrás da outra, o antigo mercadinho do Seu Dori também ascendia incorporando até um serviço de lanchonete. O restaurante em si começou em 1989 quando Dona Sônia vendia nove pratos por dia e trabalhava num fogão doméstico de quatro bocas. Ao final da década seguinte esticaria turnos de até 19 horas ao lado de Seu Dorival, todos os dias, sem folga. Tudo isso, para suprir a sinergia mercadinho, bar, lanchonete e restaurante. Vendia-se centenas de pratos por dia.

Tudo numa intensidade de paixões (o Palmeiras, a cantina, a própria família...) que deixava orgulhoso tanto Seu Dorival ao investir num presente de aniversário para Dona Sônia, quanto ela própria em receber emocionada a larga encomenda pela transportadora.

– Aí a gente engrenou o restaurante – diz mais uma vez às gargalhadas ao entregar que o tão importante presente de aniversário era um fogão industrial de três bocas.

Foi durante esse período que ela viu os enormes quebra-paus, colocou as mãos sobre a cabeça e se escondeu no banheiro. Foi quando o Brasil perdeu um herói e quando Seu Dorival comprou uma edição especial da antiga revista Contigo contendo um poster do seu ídolo e mandou emoldurá-lo. Ainda hoje o quadro está lá na cantina com a seguinte descrição: “Não fosse Deus, não teria conseguido tudo que consegui. Ayrton Senna, 1960-1994.”

De mercado, açougue, bar, lanchonete e restaurante, o local recebeu diversas reformas, até um segundo andar – hoje depósito – seria erguido para comportar os tempos de self-service. Na virada do milênio, os astros convergiram a favor de Seu Dori. Ele foi pego de surpresa quando outro grande companheiro, o Roque, conselheiro e amigo do então presidente Mustafá Contursi, deu a tão esperada notícia pela qual aguardou ansiosamente desde a tenra idade: integrar a chapa favorita na eleição da nova diretoria.

Em 2000, Dorival Seriacopi se tornou um dos poucos seres humanos que pode se gabar de ter visto e desfrutado o sonho realizado. Tornou-se conselheiro do clube e diretor do departamento de avaliação e teste do Palmeiras. Viu materializar-se aquele filme transcendental que é transmitido sempre que uma pessoa fecha os olhos. Na prática, agiu exatamente como também sonhava: um dirigente íntegro e probo.

Uma vez no comando, defendeu garotos negros e desfavorecidos diante de jogadores de famílias tradicionais, com empresários e ruins de bola. Responsável pelas peneiras no estádio do Pelezão, no bairro da Lapa, transformou a cantina também num lugar de preenchimento de fichas para participação nas seletivas.

– Isso aqui vivia cheio garotos – lembra Ana Paula que contou ter deixado, em 2000, o emprego numa concessionária de automóveis nas imediações para se dedicar exclusivamente à cantina depois que o Palmeiras tomou quase todo o tempo do pai e de Dona Sônia ter se submetido à uma cirurgia.

Apesar do susto com a filha do calabrese, foram tempos iluminados. Miguel estava lá também, sentiu a importância de auxiliar os amigos. Teve uma tarefa ímpar a qual não pode recusar. Nessa mesma data o antigo garçom do bar, o emblemático morador da rua Girassol, na Vila Madalena, o seu Manga, deixava o posto – mas continuaria a acompanhar religiosamente Ana Paula e Dona Sônia ao cemitério, nos últimos anos, no Dia dos Pais. Convocado, Miguel assumiu o dever. Tempos depois ele iria contar aos clientes casos curiosos estampados em cada fotografia afixada, entre outras, nos cinco painéis enfileirados à esquerda de quem adentra a cantina; iria lembrar-se da ocasião em que alguns músicos da banda de rock Titãs, também torcedores do Palmeiras, entraram na cantina e conversaram com seu Dorival. Antes de deixarem dedicatória no quadro com o desenho do periquito palmeirense – “Dorival, um abraço dos amigos do Titãs, Paulo Miklos e Branco Mello, 15/08/2001” – gravariam lá trechos do clipe da canção “A melhor banda de todos os tempos da última semana”.

Seu Dorival é só Palmeiras. E apesar de todas as glórias, não foi possível o destino lhe desviar de uma série de infortúnios, a exemplo da queda para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, em 2002. Até 2004, o clube enfrentaria problemas de ordem política e administrativa, denúncias de corrupção e outros dissabores. A segunda quinzena de outubro daquele ano foi um autêntico pega-para-capar. O portal de esportes Gazeta Esportiva.Net trouxe uma notícia intitulada “Proposta indecente”, onde revelava os bastidores da demissão do técnico José Cândido Farias, o Candinho, na época.

No meio da polêmica, o português não economizou palavras e soltou o verbo. Se é para pecar, Dorival pecou, mas pela franqueza. Não possuía papas na língua, era sincero, pois na batalha diária que enfrentava ser transparente era primordial para manter aglutinado o seu exército. Firme e no prumo, mostrou o que é ser um torcedor inato, por isso no final de 2004 gozava de um prestígio que não condizia com certas arruaças existentes dentro da diretoria.

A mesma GE.Net voltaria ao assunto logo em seguida no especial sobre as peneiras em grandes clubes. No dia 31 de outubro, em matéria assinada por Maurício Svartman, Seriacopi é ouvido e descrito como a pessoa honesta e realmente perseverante que sempre foi na defesa pelo alviverde:

Quinta-feira, 8 horas da manhã. No Pelezão, um centro esportivo próximo ao Cemitério da Lapa, cerca de duzentos garotos se aglomeram em torno de um campo de futebol. Enquanto 22 deles lutam pela bola que quica mais do que deveria no campinho de terra batida, alguns agarram-se ao alambrado e outros assistem à pelada de longe, acompanhados de seus pais. O objetivo daqueles meninos que pouco falam e não demonstram sono, apesar de terem acordado até quatro horas antes, é um só: tornar-se um jogador do Palmeiras.

Realizadas com cerca de três mil garotos por ano, dos quais 20 a 30 são aprovados, as peneiras do Verdão têm algumas vantagens que as livram das críticas tão freqüentemente desferidas por jogadores que não atingiram o profissionalismo. A maior e talvez mais importante destas vantagens envolve o lado financeiro: não é preciso pagar nada para participar. As inscrições são feitas no Parque Antártica a cada dois ou três meses, e de 200 a 300 boleiros são selecionados por vez.

Apesar da gratuidade, a ficha de inscrição já foi vendida por até R$ 50, garante Dorival Seriacopi, diretor do departamento de avaliação e teste e conselheiro benemérito do clube. Antes mesmo das recentes denúncias de suborno nas categorias de base (veja matéria à parte), seu Dorival, como é chamado, fazia questão de afastar qualquer suspeita. "A gente põe pra correr quem tenta oferecer dinheiro", afirmou.

Outra vantagem que o Palmeiras oferece é a garantia de que o garoto terá tempo de mostrar seu futebol. São asseguradas quatro avaliações (treinos coletivos de 20 minutos) por jogador. "Mesmo para quem não sabe nem bater na bola", completa seu Dorival. Uma característica, no entanto, é exigida pelos observadores: a noção tática do jogo. "Se posicionando direitinho, já é um grande passo", garante Anderson Oliveira, treinador de avaliação, que dá instruções táticas básicas aos recém-chegados.

As peneiras da categoria infantil ocorrem nas terças e quintas-feiras, a partir das oito horas da manhã. Já o juvenil treina às quartas e sextas, a partir das 13 horas. Após duas semanas, aqueles que apresentarem melhor desempenho individual e, principalmente, coletivo, são pré-selecionados para um teste contra o time juvenil do Palmeiras. A ajuda de custo para os jogadores do infantil é de R$ 300, subindo gradativamente de valor até chegar aos juniores, que recebem R$ 800, fora alimentação e moradia no alojamento do clube.


Quando esse texto foi postado, fez jus ao histórico a quem o serviu de fonte. Seu Dorival já colecionava duas mamárias e uma safena. Infartado, bebia a cervejinha de praxe e não tomava os remédios. E brigava. Não tinha uma só vez que não dissesse à Sônia para não se preocupar e que ele iria morrer pelo Palmeiras.

– O dia que ele recebeu esse título aqui, considerou seu dever cumprido – diz Dona Sônia se deslocando até a entrada da cantina e batendo a mão no quadro que ali permanece pendurado.

No dia 15 de novembro, Ana Paula completou um ano de casada. O pai não se cabia de tanta felicidade, dava entrevistas de cabeça erguida e preparava-se para assistir uma nova e promissora fase do seu clube do coração. Infelizmente, seu órgão vital não era mais o mesmo. Dias depois, Ana Paula ainda insistiu para que o pai não fosse ao churrasco em Campinas e, sim, na formatura do sobrinho de Dona Sônia.

A exemplo da Linha 2, verde também era a hemoglobina que corria pelas veias do português. Ele foi ao evento numa chácara da antiga Princesa D'Oeste e assistiu Flamengo 2 x 1 contra o Palmeiras, pelo Brasileirão. Um torcedor rubro-negro carioca se exaltou, causou confusão, mexeu com os brios do, àquela altura, furioso Seriacopi. O pau quebrou. No final, o grande campeão aquele ano foi o Santos, de Vanderlei Luxemburgo, sobre o Atlético Paranaense. Já o Palmeiras perdeu muito mais que um jogo fora de casa ou um Brasileirão.

Talvez fosse diferente se o Verdão tivesse ganhado, talvez fosse diferente se o Seu Dori tivesse ido ao aniversário, talvez fosse diferente se os carros no estacionamento não estivessem fechando uns aos outros num momento de emergência, talvez fosse diferente se no caminho até o hospital mais próximo não ocorressem duas paradas cardíacas no palmeirense da rua Cayowaá. Mas se talvez Seu Dorival conseguisse falar alguma coisa aquele dia, nada seria diferente, pois suas palavras seriam exatamente as mesmas:

– Sônia, não se preocupe, eu vou morrer pelo Palmeiras!

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