domingo, 20 de setembro de 2009

Os clientes

I

Sexta-feira é lei, eles se reúnem na cantina. É uma espécie de culto, ritual, não faltam. E se faltam é porque estão sujeitos a obrigações inadiáveis ou porque é feriado. Não é que abdiquem aos outros dias da semana, obedecem rigorosamente a lei. A falha na sexta significa com certeza o cumprimento da tabela no dia antecessor ou posterior, sábado. São todos habitués da casa. Entre a maioria deles é perceptível que já se passaram bem mais de 40 carnavais – salvo um ou outro rapaz que os acompanha. Tratam-se por apelidos, quase todos diminutivos ou degenerativos, escolhem com autonomia os seus pedidos ao longo das mais de duas horas que passam a cear na cantina, ocupam mesas privilegiadas e caçoam com total liberdade daquele que lhes é somente atenção.

Ele não se importa, dá risadas e se alegra, é o seu dia de festa.

– Miguel, você precisa ir com a gente lá uma hora dessas – disse o senhor de bigode com pelos brancos, erguendo a faca e o garfo nas mãos e abrindo um sorriso de quem apreciava a melhor das massas italianas.
– Eu vou, eu vou – respondia em exacerbada alegria o excitado, mandando às favas a tênue linha divisória entre a condição de companheiro e a obrigação de garçom.

Aquela era a trupe de Duda e Jacaré, os amigos de Miguel. A trupe que contava muitas histórias nos almoços. Miguel os atendia com satisfação e respeito, eram de todos os frequentadores com quem ele mais se identificava. Na mesa dos amigos é que pedia-se lasanha, picadinho ou um parmegiana; é lá que lembrava-se os casos de hierarquia do avô e do assento exclusivo; eles que chamavam com liberdade Ana Paula de Paulinha; e foi Jacaré quem tempos depois pediria que todos respeitassem as escolhas de Miguel.

Sempre organizavam uma mesa cheia. Traziam os funcionários da empresa e amigos; tinham privilégios no cardápio e eram os responsáveis na maioria das vezes pelos momentos de algazarra na cantina. Faziam singelas reservas de mesas – com a exigência apenas de que não ficassem bem na entrada – e encomendas de refeições, pratos especiais e sobremesas, para as comemorações internas da empresa.

Era para essa celebração que Miguel entusiasmado se preparava a semana inteira. Sua ansiedade era tão grande que às quintas ele se comportava com extrema irritação, estabelecendo critérios militares para a organização das mesas na cantina. Cliente desobediente entrava no relho. Nesse dia, nem ele próprio se aguentava. Seus altos e baixos seguiam um calendário comum: na segunda-feira estava alegre, animado e vivaz; até quarta-feira ia tudo bem, quando os fornecedores vindos em razão da feira-livre o tiravam do sério; no dia seguinte estava agitado, chato, pré-sexta; e sábado era morno, dia de receber um ou outro cliente da semana.

Mas sexta-feira era incomparável, parafraseando os adágios mais antigos, era o dia em que Miguel colocava Estricnina na própria água antes de ir para o trabalho. E não apenas seus amigos lucravam com isso.

Apesar de Duda ser um dos principais apreciadores da cantina, o local contava com um batalhão de clientes assíduos. Estavam entre eles, os jovens movidos pela oportunidade de comer um prato delicioso, saudável e nutritivo – mesmo que não soubessem diferenciar muito bem isso – e beber uma garrafa de refrigerante por uma média de R$12 a R$15. Clientela cujo perfil pode ser resumido em homens e mulheres de 18 a 25 anos, cabelos inspirados em culturas afro, emo ou simplesmente despenteados, estudantes de artes ou comunicação, estagiários em agências de publicidade e empresas do gênero no departamento de criação ou tecnologia. Chegavam em duplas, trios ou mais pessoas, nunca sozinhos. Sempre pediam para caprichar na batata frita ou para pendurar a conta.

Miguel tinha alguns fãs entre o público juvenil. Vivia em desavenças, mas gostava deles. Adorava quando surgia um engraçadinho querendo mostrar intimidade ao chamá-lo pelo nome. Quem sabe o fato de ser sexta-feira, quando Miguel estava em êxtase, também contribuísse para que o clima de festança na mesa de Duda propagasse para as demais e fizesse com que os tais jovens outorgassem a si a liberdade de tratar com o palmeirense de maneira íntima.

– Miguel, dá pra fazer um filé a parmegiana caprichado pra dividir pra dois? – buscava com a artimanha dos universitários dobrar o orçamento gastando a metade do valor real com a refeição diária.

Aí dessa garotada querer folgar noutros dias. Não ousavam. Além dos bate-pontos, funcionários de uma empresa nas proximidades também frequentam a cantina quase diariamente. São eles, dois homens, às vezes só um, e duas mulheres. Não são casais, não têm profundas intimidades e não falam de coisas grosseiras. Bem, não deve-se levar em consideração que as duas mulheres em outra oportunidade falaram mal de outra mulher da empresa, enquanto pediam as sobremesas. Inclusive, eles sempre pedem sobremesas. As duas mulheres são adeptas ao cardápio equilibrado da cantina, inclusive às receitas um pouco mais “pesadas” que não são exageradas em quantidade. Come-se na medida, de forma moderada e sem desperdiçar para quem está de dieta ou de regime. A própria sobremesa é bem dosada. Os glutões... reclamam.

Duas mulheres com mais de 30 anos gostam de aparecer às quartas, elas pedem os pastéis. Homens engravatados também aparecem sempre, além de gente com aparelho Nextel e sacolejo de representante. Tem também a turma do interior, pessoas do entorno de São Paulo e de cidades num raio de 150 quilômetros de distância (por qualquer motivo aparecem às terças); uma senhora de pele e cabelos claros, vestida como executiva, ou secretária-executiva, que nunca está acompanhada; e um homem também sozinho e de pele e cabelos claros, mais de 50 anos e cara inevitavelmente amarrada. Tem ainda o tipo homem descolado, cáucaso, cabeça raspada, óculos com as lentes redondas, calça Opera Rock, tênis Cavallera, cachecol nos dias frios, ar de inteligente, emburrado e às vezes um cavanhaque. São muitos, mas tão semelhantes que é impossível diferenciá-los.

As moças do salão ao lado vão pouco à cantina, a equipe da agência de modelos em frente – do outro lado da rua – quase nunca. Os famosos das fotografias expostas nos painéis afixados nas paredes – como o governador José Serra – também não. Quem procura self-service ou rodízio dá meia-volta. Corinthianos roxos, pois bem, esses poderiam até não se sentirem à vontade no entanto depois de contratar Ronaldo Fenômeno até os simpatizantes da Fiel almoçam sem contratempos na cantina. Os moradores da região também. E ainda tem os curiosos que entram apesar de não encontrarem qualquer placa, nome ou referência na fachada que possa identificá-la. Isso mesmo, a cantina não tem nome, não tem site, nem logotipo, nenhuma identificação no cardápio, apenas um imperceptível quadro-negro com os pratos do dia escritos em giz branco pendurado discretamente na entrada.

E o brasão da família Seriacopi exposto também já na entrada? Perguntaria o mais contínuo dos clientes.

Ora, assim como a nova clientela sempre confunde Miguel com o proprietário, não relacionam à primeira vista o brasão com o nome do lugar. Mesmo porque esse não é o nome da cantina e mesmo assim todos os dias novos clientes entram para almoçar, passando o cartão de crédito ou débito e conferindo no recibo a descrição Dok's Bar – que também não é a alcunha do estabelecimento, somente o nome fantasia para efeitos contábeis. Ou alguns antigos como o Duda que toda sexta-feira aprecia seu banquete pessoal (com placa ou sem placa, nome ou não na fachada ou no cardápio).

– Miguel, você viu que palhaçada o Marquinhos na terça-feira? Entra para decidir e sai expulso... – comentou o Jacaré.
– Eu falo: não tem mais seriedade no futebol! – apresentou ao colega, ainda de costas porque atendia outros clientes, a sua opinião sobre o incidente no jogo do Palmeiras contra a LDU, pela Taça Libertadores 2009.

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