domingo, 20 de setembro de 2009

O Dono

I

Os olhos espantados, curiosos e matreiros do agitado Rafael fitavam mesa a mesa, vez por outra, todas as pessoas. Espoleta, cortava da cozinha à calçada nos moldes de um velocista, ganhava impulso correndo semelhante aos patinadores de circuitos fechados que pendem o corpo ora para a direita, ora para a esquerda. Passava por milímetros de esbarrar no novo garçom, nas mesas ou nos clientes.

Na agilidade de um suricato, quisesse vê-lo era preciso estar atento aos centésimos de segundo.

– Corínthians não! Palmeiras! Eu sou Palmeiras, nem me fale em Corínthians! – puxou, num grito, a orelha da mãe, prima de Ana Paula, que a muito custo conseguiu colocá-lo à mesa, bem embaixo da foto de Dorival Seriacopi, para comer.

A mulher descuidou-se e mencionou, sem querer, a equipe do Parque São Jorge e de forma automática o traquinas com pouco mais de cinco anos enervou-se. Neto de Marcolino Teixeira, irmão do meio de Dona Sônia, o garotinho nem imaginava que o seu playground momentâneo pertence a terceira geração de uma família cuja a origem tem como base as redondezas da Pompéia e de Perdizes, e que desde tempos remotos leva consigo no peito o emblema da esquadra verdejante do Parque Antártica.

Seu tio-avô Dorival – mesmo que o garoto não o distinguisse em nenhuma daquelas imagens – viveu e morreu literalmente pelo time. Por isso nada de errado havia com a irritação do pequeno, ao exaltar-se apenas manifestou uma característica hereditária, apesar de o pai corintiano, e que se expressava nele da mesma maneira que transmiti-la já é parte integrante do seu destino.

Rafael não conheceu o “tio Dori” mas um dia vai ter a oportunidade de ler a história daquele homenzarrão branquelo, de charmosos olhos azuis e metido a besta que nos louros dos 16 anos, em 1957, não teve medo de estufar o peito e ir pedir em namoro a então jovem de apenas 13 anos ao dono do açougue na esquina das ruas Luminárias e Heitor Penteado. Vai saber também que enquanto o seu bisavô materno, o açougueiro, era um genuíno calabrese em sangue, modos, pratos e coração, a bisavó era de origem portuguesa assim como o próprio “tio” Seriacopi.

Se a curiosidade aguçar, podem acrescentar ao palmeirense dente-de-leite que o “tio Dori” quando jovem era muito amigo do irmão de Dona Sônia, o vô Marcolino, e vivia primeiramente de olho na irmã mais velha dela, que logo esteve comprometida com outrem.

– Na casa dos meus pais tinha uma escada. O Dorival me disse que o dia que me viu descer aqueles degraus teve certeza de que eu era o amor da vida dele – lembra com carinho e emoção, e com os olhos lacrimejantes, a tia-avó do traquinas sempre que o nome do eterno companheiro é mencionado.

Seu Dori nasceu, cresceu e viveu no imóvel onde está localizada a cantina e onde funcionou por muitos anos a marcenaria do pai. A casa da família ficava nos fundos – existe ainda hoje. Contador, taxista, funcionário do Grupo Sérgio, antigo perueiro e torcedor fanático do Palmeiras, Dorival Seriacopi tinha como companheiro inseparável, além do colega Marcolino, um bonitão de origem luso-italiana chamado Miguel Pascoal. A dupla de periquitos foi o terror dos anos de 1950 na Zona Oeste de São Paulo. Da avenida Paulista, passando pelas ruas Dr. Arnaldo, Apinajés, Aimberê e Caiowaá até à avenida Pompéia e, depois, parte da Lapa, conheceram os mistérios da vida, constituíram família, criaram os filhos e deixaram sua marca registrada cada qual com sua história, com sua coleção de aliados e inimigos, com seu rol de admiradores e desavenças, e acima de tudo com o seu caminhão de boas recordações.

Esse mesmo companheiro inseparável assumiria, por volta do ano 2000, o atendimento na cantina e, apesar de alguns intervalos, não deixaria Dona Sônia e Ana Paula em momento algum sem assistência.

– “Seu Miguel” e meu pai eram muito amigos, desde a juventude – comentou Ana Paula ao confirmar estar sempre buscando orientação do amigo quanto à aquisição de determinados produtos ou à indicação de algum profissional para a cantina.

Apesar de toda pompa de brigão e de devoto pelo alviverde provavelmente Seu Dori nunca confessou aos colegas quem de fato o levou para dentro do Parque Antártica. Talvez, nem Miguel conheça esse segredo. Se conhece, não toca no assunto. Antes de iniciar o namoro, Dona Sônia era não apenas torcedora do Palmeiras como também sócia há anos. A primeira batida com o pau-de-macarrão para Dorival Seriacopi não se deu por ciúme, carência, libertinagem ou sem razão. Foi determinante: adquirir o título de sócio do clube.

– Ou virava sócio ou terminava o namoro – revela às gargalhadas e durante os raríssimos momentos em que o trabalho lhe reserva instantes de intimidade, a outrora pequena garota de 13 anos. Agora, aos 55 anos, ainda pequena e com os cabelos curtos, faz contínua peregrinação até a calçada para pitar alguns cigarros.

Uma vez que a equipe do Parque Antártica sempre foi o sonho e a paixão do Sr. Dori não se sabe até aonde a imposição de Dona Sônia soou autoritária ou desconfortável. Ele a atendeu de prontidão. A realidade é que durante a vida inteira o grandalhão filho do português da marcenaria não soube em momento algum diferenciar onde começava e terminava a vida de torcedor e a de profissional e pai de família. Tudo se misturava. E a casa da família Seriacopi nunca deixou de ser uma verdadeira extensão do Palestra Itália, uma das principais cozinhas do clube. Talvez, por isso a principal característica dos pratos da cantina hoje em dia seja o precioso tempero preparado com o uso básico de alho, sal e óleo, um equilíbrio essencial e indispensável no paladar do palmeirense – que Dona Sônia adotou depois do casamento moendo todos os ingredientes – cujo nome está marcado na entrada do Palestra Itália através de uma placa em homenagem aos seus ex-diretores e ex-conselheiros.

– Não tinha um só dia em que ele não almejasse algum espaço no grupo dirigente do clube – reforça Paulo Seriacopi, o único irmão de Ana Paula, atrás do balcão do bar, depois das 18h, e na companhia de seu fiel escudeiro no comando dos espetinhos, o Careca.

Paulo testemunhou o quanto o pai sonhou com essa glória. Que fosse apenas uma gestão, quatro anos, não importava, o objetivo era estar lá dentro. Tal desejo, afirma o primogênito que faz questão de manter viva a memória do pai nos adornos decorativos da cantina, não tinha nada que fosse relacionado à status ou interesses escusos financeiros. Tudo girava em torno de um sentimento de dever para com a equipe, a vontade de querer fazer algo mais, de corrigir erros, apontar caminhos e trazer soluções para problemas aparentemente simples mas que corroíam um dos principais times do futebol paulista.

– Sônia, eu vou conseguir, um dia serei da diretoria do Palmeiras – repetia com convicção à esposa, que o apoiava com unhas e dentes, ou melhor com os dentes nas unhas.

O envolvimento de Seu Dori com o Palmeiras ultrapassou barreiras até mesmo do bom senso. Dona Sônia perdeu as contas de quantas vezes, após os jogos, acompanhava o marido até o hospital onde ele chegava ofegante, roxo e sem ar. Os 16 anos de jejum em que a equipe ficou sem ganhar nenhum tipo de campeonato, entre 1976 e 1993, foram momentos muito difíceis. Foi um período que coincidiu com a abertura do mercadinho e, consequentemente, com a reunião de um bando de torcedores alucinados pelo Palmeiras e que, assim como manda a tradição, gostavam e muito de um bom quebra-pau.

Cena usual era Dona Sônia correr, com as mãos sobre a cabeça, para o antigo banheiro que havia no lugar para se esconder da pancadaria. Assim que o tumulto acalentava, ela tratava de recolher os gladiadores e encaminhá-los às respectivas dependências. Segundo ela, o seu desespero sempre recebia o afetuoso consolo do marido:

– Está tudo bem, Sônia, eu vou morrer pelo Palmeiras!

Em diversas ocasiões tal manifestação era realizada em meio à catéteres, agulhas e tubos. Eram instantes de menor eloquência, no entanto de similar e tamanho ímpeto. Seu Dori viveu muitos sofrimentos. Situações de matar qualquer torcedor. A derrota do Palmeiras para o XV de Jaú na última rodada da fase de classificação do Paulistão, dentro do Palestra Itália, por 3 x 2, foi uma delas. Era dia 24 de novembro de 1985. Além de ser obrigado a vencer, o Palmeiras urubuzava o Corínthians contra a inexpressiva equipe do Comercial, de Ribeirão Preto. O arqui-rival jogou de manhã e perdeu. Como o XV de Jaú já estava eliminado coube a Ferroviária de Araraquara avançar pelas semifinais, ser vencida pela Portuguesa na sequência para que esta deixasse o São Paulo campeão.

Foi um golpe certeiro em Seu Dori. Aquele ano ele considerava que o time tinha condição de largar o resguardo e vencer o estadual. Teve quebra-pau. O coração não resistiu, a falta de ar sufocava-o e a roxidão dava sinais do caminho a ser tomado. O hospital.

Eu vou morrer pelo Palmeiras, Sônia, eu morro pelo Palmeiras! – grunhia com emoção e garra apesar da voz mansa e sonolenta resultado do medicamento que havia acabado de receber.

O futebol foi mais que um simples esporte para aquele que iria abrir o primeiro restaurante self-service no entorno de onde é atualmente a estação Vila Madalena do Metrô – inclusive, a cantina foi um dos principais pontos de refeição para os operários que trabalharam na construção do ponto final da Linha 2 - Verde em meados da década de 1990. Dorival Seriacopi almoçava, jantava e transpirava futebol. O desejo congênito de ingressar na diretoria do Palmeiras fez com que ele, desde cedo, datasse o início do seu projeto de dirigente. Em 23 de março de 1961, inaugurou o Brasilzinho da Pompéia, um time de várzea que congregava os craques da região homônima.

Fonte inesgotável de novos boleiros, o Brasilzinho fez sucesso. Rendeu principalmente muito calo nas mãos de Dona Sônia, afinal de contas ela é quem muitas vezes recebeu aquele malote de tatu do marido ao final de cada partida do time. Em verdade, centenas delas. O Brasilzinho era uma genuína nação do futebol paulistano, um grupo de pessoas que não percebia que os anos se passavam, que a idade avançava e que, a cada 12 meses, os novos talentos do time eram jogadores sempre mais novos. A velha-guarda nunca arredava o pé de dentro do campo, seja em campeonatos, seletivas ou nas peladas. Adictos pela redonda, ficavam cegos pelo esporte.

Mas uma hora a ficha caiu. O tempo voou e no aniversário próximo aos dez anos de existência da equipe, os seus colaboradores se conscientizaram que o negócio era deixar cada macaco no seu galho. Não, eles não abandonaram o campo, ao invés criaram o novo braço do time: os “Veteranos da Pompéia”. Agora, surgia a equipe paralela do Brasilzinho, assim como mais uma enorme dor de cabeça para Dona Sônia.

Essa experiência foi a prévia da escolinha do Palmeiras que seu Dorival seria responsável, a partir de 2000, quando finalmente se tornou conselheiro benemérito do clube e ocupou o posto de diretor do departamento de avaliação e teste. A frente do Brasilzinho e do Palmeiras não faltariam ringues para uma boa encrenca. Dorival dava um boi para não entrar, mas uma vez dentro do tumulto entregava uma boiada para não sair. Se envolvia fisicamente sem qualquer medida, e com uma frequência inigualável, na defesa do escudo alviverde.

– Sônia, eu morro pelo Palmeiras!

Muito antes, nos idos do cruzeiro como moeda, da fita Basf com o hino do Verdão e do Fiat 147 à álcool como a última novidade, ele já era duro na queda. Brigava. Até que um dia cansou-se de discutir no terreiro dos outros e fez da oficina do pai, assim que o mesmo faleceu, o ponto de encontro daquela turma de amigos broncos, enfezados, beberrões e, acima de tudo, ímpares em fraternidade.

Em 1980, no quarto ano em que o Palmeiras não vencia um campeonato se quer, Dorival Seriacopi abriu as portas do mercadinho num simplório e aconchegante cubículo medindo algo próximo a 20 metros quadrados, encrustado no pé de uma rua íngreme e histórica da capital paulista. Precisamente no final de uma das vias, não principais, de maior extensão da Zona Oeste.

Dona Sônia, seu braço direito (e esquerdo), estava lá. Por isso não deu outra: junto com o mercado, um açougue.

Um comentário:

  1. CONHECI ESSE CASAL DE PALMEIRENSES FANÁTICOS ,E SEUS FILHOS ,PESSOAS DE GRANDE CARATER ,,,,,,,,ERA CONHECIDO POR ELES POR TATU

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