domingo, 20 de setembro de 2009

II

Faz diferença, para o cliente, o lugar a ser acomodado. O prato a ser escolhido é outra história. As mesas ali distribuídas apesar de similares e de ocuparem um espaço diminuto não são semelhantes entre si no que diz respeito ao gosto das pessoas. As que se localizam próximas à calçada – nunca em cima dela, deve-se lembrar – são menos interessantes em razão do sol nas estações quentes e do vento nas estações frias, estão perto do trânsito de pedestres e do barulho e fumaça da rua. Miguel faz questão de arrumá-las em pares – para quatro pessoas.

Na linha central da cantina, em ambos lados, estão as mesas que ainda podem ser vistas pelos transeuntes e que também são ajeitadas em pares ou já individuais – para duas pessoas. No fundo, próximo ao bar, do lado esquerdo, embaixo dos painéis de fotografias, ou do lado direito, de costas para a geladeira com a bandeira de Portugal dependurada, estão as mesas mais discretas, individuais, de onde se enxerga parte da rua e delas têm-se uma visão pouco nítida a quem está do lado de fora.

Desta forma, sabe-se que certas pessoas vão preferir esta ou aquela mesa e que isso é algo corriqueiro no dia-a-dia da cantina ou de qualquer outro estabelecimento do gênero.

As mulheres, principalmente, se incomodam bastante com a situação, pois às vezes Miguel, como já citado, as encaminha para uma mesa onde o sol queima em exagero ou então próximo à calçada cercadas pelos olhos dos pedestres e pelo ambiente nauseabundo empapuçado com a fumaça dos automóveis. Elas são sensíveis, e haja linha de cosméticos, à cidade que possui 91 mil ruas e avenidas, onde transitam quase 6 milhões de carros, sendo que deste total 32 mil são táxis e 10 mil ônibus urbanos. Não querem sentir essa situação na pele, ao menos não na hora do almoço.

Se alguém rompe a placa de sinalização sentando-se livre onde desejar é servido com uma pitada de indiferença, poucas palavras e nenhum primor. Miguel fica inconformado. Olha com rabo-de-olho, resmunga. Reverter o problema só mesmo se o cliente envolvido no desdém em questão for alguém muito espirituoso que, mesmo diante de tamanho descaso, ainda assim sorri e agradece o amigo em serviço.

Miguel faz tipo de durão, mas tem o coração mole.

É o paizão que gosta de colocar ordem na casa. É o personagem da lembrança que um de seus amigos clientes contara outro dia sobre o próprio avô. Enquanto devorava uma apetitosa lasanha, aquele homem com trejeitos de comerciante, cabelos brancos, lisos, mas crespos, falava de casos pessoais e descreveu com precisão uma passagem de sua infância:

– Quando a gente ia almoçar lá na fazenda cada um tinha o seu lugar, primeiro sentava meu avô na tradicional ponta da mesa e então meus pais e tios, as mulheres, só depois a garotada. Na sala não era diferente, ninguém sentava na poltrona de leitura e de ouvir o rádio que era do meu avô.

Miguel ainda segue à risca essa hierarquia, assim como seus colegas ele também deve ter sido criado num ambiente onde os privilégios eram sinais de respeito e tradição.

Por outro lado, não foi assim que aquele casal sorridente deveras foi criado. É bem provável que o conceito deles sobre respeito e tradição seja o avesso do de Miguel. São outros tempos, eles não entendem quais foram as intenções do torcedor fanático do Palmeiras ao insistir que eles ficassem na mesa próxima à rua.

– A mesa é para quatro lugares, vocês vão ficar com espaço – argumentou, tendo em vista bolsas e mochilas sobre as cadeiras.
– Não queremos, está batendo sol em mim – reclamou a garota, ao ser consolada pelo namorado.

Talvez a atitude sistemática de Miguel passasse despercebida se o clima entre o casal não sofresse reveses como aconteceu. Ele e ela entraram sorridentes e discutindo sobre um trabalho em vídeo que pensavam em fazer. Eram estudantes de Jornalismo e, pelo visto, a empreitada correspondia ao projeto de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Usuários do Metrô e da CPTU, moravam próximos à cantina e tinham em mente um roteiro a qual discutiam. Ela professou a respeito do tema, contou sobre o velho que aborda as pessoas para oferecer os serviços de taxi em frente à escada da estação. Em outras palavras, disse:

– Todos os dias frente à escada do Metrô, na estação Vila Madalena, que dá acesso à rua Heitor Penteado (na saída pela José Augusto Penteado) no lado oposto ao do terminal de ônibus, um homem na casa dos seus 60 anos interpela quem alcança a luz do dia ou o breu da noite. Ele é gordo, grisalho, calvo, sua roupa desgastada é timidamente escondida por um projeto de colete com faixas em tinta fosforescente. Em estado de emergência estão o seu par de tênis made in vietnam e os dentes irreais que ficam visíveis a cada vez que sorri após a pergunta: quer táxi? De manhã quem está a descer as escadas, ouve a contingência indagativa desse mesmo senhor: quer táxi? Assim que retornam para o sagrado descanso do lar deparam-se incontinente com ele: quer táxi? Se faz sol, chuva, frio, calor, se é sábado, domingo ou feriado, jogo da seleção brasileira, eleição ou 25 de dezembro: quer táxi? Não importa que o indagado seja um morador das redondezas e faça diariamente o mesmo caminho, o mesmo trajeto, passou pelo senhor do colete aos pedaços vem a encomenda: quer táxi?

Ele ouvia atentamente a história que ela contava. Então, a jovem prosseguiu.

– Não é difícil aquele senhor berrante do Metrô Vila Madalena, depois de sair de casa com o céu negro e estrelado, olhar para o dia claro, azul e ensolarado e torcer – enquanto pende a cabeça para os lados no trajeto pelos trilhos ou avenidas – para que uma nuvem negra paire sobre a Zona Oeste de São Paulo e dela caia uma chuva fina, mas contínua, daquelas que fazem todos os que saem pela escada do Metrô ter pena daquele pobre coitado e pedir um carro antes mesmo que ele abra a boca para dizer: quer táxi? Nos dias de sol e de clima ameno as pessoas tendem a ser mais enérgicas, andando à pé ou pegando o ônibus para chegar ao seu destino assim que saem da estação. Se ver aquele homem em dias normais é algo que comove quem passa por ali, o que dizer então dos dias chuvosos em que ele veste uma capa de plástico feita com sacolas costuradas com fios de cobre e que se protege dos pingos com um guarda-chuvas caquético, assimétrico, furado, tortuoso e enferrujado? É o dia que o trabalho dele é sucesso, rende cortesias, menos aborrecimentos e uma quirela a mais de gorjetas.

Ele olhava para alto como se estivesse a ter ideias, viu com isso o enorme e antigo candelabro de teto da cantina, que carecia de três lâmpadas no total de seis. O roteiro dela até o momento se passava a dois quarteirões dali. Tinha bom fundamento. Ela não parava de falar.

– Os moradores do prédio em frente devem não suportar mais tal atividade embaixo de suas janelas. Principalmente aqueles, ou aquelas, cujo período de labor transcorre durante à noite e que dependem das manhãs e tardes para dormirem. Esses respeitáveis trabalhadores certamente alegarão que somada à buzinas, apitos, freios, gritos, aceleradas, berros, furadeiras, serras elétricas, imóveis em reforma ou construção, jatos d'água em postos de gasolina, escapamentos e à empregada do apartamento vizinho, a exclamativa incessante do solícito “quer táxi?” torna-se um incômodo sem precedentes, além de um ótimo dispositivo para a insônia.

Miguel não apareceu para oferecer-lhes outra mesa. O jovem pensou que talvez o garçom tivesse concluído que ambos estavam satisfeitos com o lugar. No entanto, ele sabia que assim que a garota acabasse com a explanação sobre o script, logo reclamaria no mínimo o cardápio que ainda não tinha sido entregue. Ela emendou.

– Vamos falar com quem garanta já ter se acostumado com a atividade e com quem já tentou explicar várias vezes ser morador do edifício em frente ao senhor “quer táxi?”, mas que as tentativas foram em vão.

Ele disse ter gostado da ideia, mas ponderou que a conivência do velho era fundamental para a realização do projeto sendo que, dessa forma, a primeira providência a ser tomada seria conversar com o próprio. Foi quando ela mostrou-se irritada e quis saber do cardápio. Ele levantou a mão e acenou. Ela começou a dissertar sobre os problemas, explicou que o velho não trabalha mais no local. Meses atrás, viu ele andando de um lado para o outro na porta da farmácia, na outra esquina.

– Parecia descontrolado, conversava sozinho e gesticulava os braços. Bateu boca com um homem mais novo, carrancudo, de bigode e com ares não muito insinuantes à prosa. Procurou dispensar o soco que provavelmente estava ávido a aplicar na cara daquele adversário que imóvel com o peito estufado insista apenas em olhar atenciosamente para o horizonte.

Ignorado e com os nervos à flor da pele, o velho senhor “quer táxi?” – disse ela – mexia-se todo ao telefone público, fazia objeções com relação alguma medida, dizia-se traído e injustiçado e afirmou que, uma vez mantida a situação de desconforto, nunca mais voltaria a trabalhar naquele lugar.

– Eu esperei tempo demais para falar com ele – reclamou a si mesma.

O namorado dela entendeu que tudo não se passava de amadorismo, ideia de estudante, que pensa um trabalho genial mas não se dá conta de que maneira irá executá-lo. Assim que Miguel foi chegando, ele pediu o cardápio e falou novamente sobre sentar-se noutra mesa. Ela, eufórica, finalizou a proposta.

– Ele foi embora mesmo. O tal homem do bigode ficou pouco tempo, foi substituído por um sujeito moreno que também já deu lugar outro, que já saiu. Agora não é possível identificar alguém em específico que ocupe aquela vaga de trabalho, ao que tudo indica existe uma alta rotatividade de profissionais que a procuram. Além disso, o que está agora, tem um colete padronizado, coisa fina, escrito “Auxiliar Operacional de Táxi”, deve ter entrado um sindicato na jogada.

Antes que ele afirmasse ser difícil desenvolver o trabalho, apesar de a história ser interessante, ela concluiu o desfecho dizendo que o velho trabalhou oito anos naquele posto e naquelas condições e que, depois do ocorrido, voltou para a sua cidade natal localizada no norte de Minas Gerais.

– A história é ótima, o problema todo é o lugar onde ele está – disse sem muito entusiasmo.

Os dois ficaram calados. Bastou uma pitada de frieza e do racionalismo dele para que ela entendesse que a proposta era falha. Pelo jeito, ela havia trabalhado pesado nessa ideia. A inviabilidade do projeto deixou os dois nervosos e no final da conversa os ânimos não eram os melhores, tanto de um lado quanto do outro. Ela queria portfólio para pleitear um lugar na O2 Filmes, ele queria apenas concluir o TCC e sair logo da faculdade. Não bastasse, havia a insistente recusa pela mudança de mesa.

– Como é, a gente pode se sentar ali dentro ou não? – disparou a jovem sem cara de muitas amizades.

Miguel desconversou, entregou o menu, elogiou o prato do dia – carne de panela enrolada na batata cozida – e voltou-se para mesa ao lado. O casal mexeu-se nas cadeiras. Ela enfurecida lia o cardápio, ele procurava acalmá-la. Não conseguiu, foram embora. Entraram três pessoas juntas em seguida, estavam menos empolgadas e sem sorrisos escaldantes. Sentaram-se onde bem quiseram no meio da cantina, nem olharam para o garçom, havia um cardápio na mesa e começaram a escolher. Fizeram o pedido. Miguel não fez objeção alguma, ou seja, não sabe o porquê, ali pode.

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