domingo, 20 de setembro de 2009

A Mesa

I

Miguel sorriu ao ouvir alguém contar a velha piada de que a bola tem dois lados: dentro e fora. Coisa de garoto, ciência fundamental para ingressar nas escolinhas de futebol.

– Como que é, gostou? – perguntou Miguel ao grupo sentado ao centro da cantina enquanto seus integrantes saboreavam as primeiras garfadas.

Assim, independente de qual fosse a resposta – e parece que ele nunca se importa com a resposta –, continuava a inquirir os outros comensais sem deixar, é claro, de implementar detalhes sobre os pratos.

– Hoje a Sônia caprichou! – passou a mão nos lábios da esquerda para a direita e depois fez um sinal de OK.

Atento ao timing das refeições, sugeriu sobremesas ou o tradicional cafezinho quando percebeu o almoço de alguém rumar para o encerramento. Estava inspirado em plena quinta-feira, sentia-se empolgado com a chegada do fim de semana. Insistiu em mencionar em voz alta o sabor incomparável do manjar servido no dia, ou a opção do irresistível quindim, colheu em seguida novos pedidos certeiros e imploráveis pelas sobremesas e se dispersou na abordagem de um novo cliente.

Vale ressaltar que não é só de notas de rodapé que vive ele. Responsável pela divisão e organização das mesas no recinto, Miguel é quem encaminha o freguês para o lugar correto a ocupar. Há luas ele conhece os dois lados da pelota. Isso implica, necessariamente, em não haver acordo se a preferência do cliente por uma mesa for contrária à sua orientação.

– Posso sentar-me aqui? – perguntou sem compromisso e puxando a cadeira o rapaz que trazia a namorada para almoçar.

Miguel não abre mão de seu roteiro diário. Pode haver mesas vazias, e aquele dia havia mesas vazias, mas regras são regras.

– Não, aqui por favor – acomodou o cliente onde bem desejou mesmo diante de uma cara feia.

A chegada de outro jovem casal feliz, debatendo um assunto qualquer e, simultaneamente, a procura de um lugar para sentar-se à vontade, logo é interpelada pelo escrutínio do anfitrião que dispara sem nenhuma compaixão ao espírito de alegria então manifesto:

– Aqui, aqui, esse é o lugar – apontou ao mesmo tempo em que esfregou as mãos e preparou-se para apresentar o menu e fazer a sua sugestão quanto ao prato também (apesar de o casal tê-lo ignorado e continuado a conversar).

Paul Blüher, Gringoire e Saulnier, Borgarello, Klopfenstein, Leospo e Carnacina, são alguns dos maiores autores de manuais de serviço à mesa no mundo. De um jeito ou de outro, o trabalho de Miguel – ou de qualquer outro garçom ou maitre – sofre influência desses especialistas, homens que dedicaram mais do que a própria vida pela arte de preparar e servir alimentos, e de receber os clientes. É difícil saber em qual deles exatamente Miguel se inspira para organizar a sua mise en place. Uma pesquisa exaustiva sobre o tema não elucida quaisquer referência sobre o lugar correto a encaminhar determinado cliente – a não ser que a pessoa, ou outra, tenha uma mesa de preferência ou reservada.

Habilidoso, Miguel nunca consultou, entretanto, o calhamaço Arte e Ciência do Serviço publicado pela editora Anhembi Morumbi e que diz:

“Quando o cliente estiver sentado à mesa, tem início o serviço propriamente dito: uma boa organização fará a diferença entre um serviço apenas aceitável e um feito com esmero e profissionalismo”. E ainda: “A primeira pessoa que se aproxima da mesa dá as boas-vindas ao cliente e verifica que esteja à vontade.”

Em seguida, lança dicas sobre as tarefas do maitre em relação ao cliente que incluem: “perguntar-lhe se gostaria de tomar um aperitivo”; e “propor o cardápio, descrevendo brevemente a sua organização, os eventuais pratos do dia e orientando o cliente com suas sugestões”.

Apesar de desconhecer a obra específica, Miguel segue os quesitos básicos que regem as atividades de maitre e de garçom, certo que é seu trânsito entre as duas, mas o seu critério em decidir qual a mesa deve ser ocupada – num restaurante onde não há reserva de lugares – não se encontra em nenhum dos manuais. É muito pessoal.

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