domingo, 20 de setembro de 2009

II

Quarta-feira nublada, de chuvisco e de feira livre um quarteirão acima. Uma das 900 semanais que acontecem em São Paulo. Morro abaixo descia a água oleosa resultado da limpeza das barracas e da garoa fina. Apesar de tudo, o tempo estava abafado. Respirava-se a distância o cheiro forte de peixe – inclusive um dos pratos do dia na cantina. Uma mulher de 35 anos, sacolas na mão e aparentemente recém-saída de um consultório pediu o cardápio e viu que – a exemplo da feira – ali também podia-se comer pastéis, outro prato do dia.

– Como é o pastel? – perguntou com humildade a freguesa sem conter, no entanto, o seu objetivo de saber de uma só vez quais os sabores, o formato e o custo-benefício da guloseima frita.
– Ó, temos de carne, calabresa, queijo e pizza. É maior que o da feira, dá para um almoço – explicou Ana Paula.
– Me vê um de carne e uma Coca.

Dentro da cantina acizentava uma penumbra, em pouca luz e com um clima de aconchego. Todas as mesas estavam ocupadas, pois a que permanecia vazia acabara de receber dois outros novos clientes. Antes que pedissem bisteca com couve, ovo, farofa, feijão preto e arroz (completando a tríade de pratos do dia), o garçom que substituiu Miguel percebeu que eles não eram paulistanos. Pareciam cariocas, mas fizeram menção à Nova Lima e Belo Horizonte, lembraram-se de amigos e circunstâncias passadas nessas cidades. O garçom deduziu que fossem de Minas Gerais em virtude de ouvir o nome de Belo Horizonte, terra do Galo Atleticano e da Raposa Cruzeirense. Na hora que foi entregar a Tubaína eles falavam sobre a cidade de Natal. Ficou confuso, encasquetou-se nos próprios pensamentos e preferiu ficar de olho na dupla que acabara de entrar na cantina.

– Oi minha linda, hoje eu trouxe uma coisa especial para você! – disse um homem mameluco entonando um sotaque nordestino.
– Muito obrigada, mas hoje eu tenho muito limão. Lembra que você deixou um monte da última vez? – respondeu Ana Paula atrás do balcão.
– Tá baratinho, pra me ajudar vai – insistiu o sujeito ao tirar do ombro direito os dois sacos de limão sicilianos verdes e reluzentes.
– Paulinha, vou fazer uma graça porque você merece. Esses dois dele mais esses dois meus. Quatro sacos por apenas R$ 4, só pra você! – intrometeu-se o segundo homem, com um olhar malicioso que combinava bastante com o seu chapéu de coco dobrado e com uma leve queda à direita.
– Quatro reais. Tudo bem, me dá aqui, então.
– E mais um cafezinho, pra amargar a boca – disse o primeiro homem separando um copinho de plástico descartável e abrindo a garrafa térmica sobre o balcão.
– Pra mim a branquinha e já corta um limão pra você ver a formosura que eu te arrumei – emendou o pedante do chapéu.
– Vai com calma – disse o primeiro homem antes de agradecer Ana Paula e Dona Sônia e sair da cantina.
– Agora estou realmente com os sacos cheios de limão. Por um bom tempo não vou precisar, se não perde, tá bom? – explicou Ana Paula, enquanto enchia o copo americano de cachaça 51 para o intragável.
– Saco cheio, saco de cheio de limão, ha ha, entendi! Tudo bem, linda, mas ainda não te entreguei uma coisa especial – falou virando-se de costas caminhando em direção à porta.

Em cima de uma alvenaria rasteira, na entrada, o homem do chapéu de coco remexeu numa sacola de plástico e tirou dois pimentões bonitos e vistosos, entregando-os em seguida para Ana Paula. De supetão ele espremeu as duas partes do limão no copo, mexeu o caldo com a cachaça no sentido horário e mandou tudo numa talagada só goela abaixo. Ela agradeceu disse que gostava muito da hortaliça, que é uma das mais ricas em vitamina C, e os encaminhou para a cozinha onde deveriam nas próximas 24 horas se transformar num condimento saboroso no preparo de molhos para cozidos ou assados. A base de uma receita fresquinha para um dos pratos do dia de quinta-feira.

Nas manhãs de feira livre era assim e a dupla fornecedora de limão não era a única. Aliás, às 13h45, já haviam passado os fornecedores de ovos, pimenta e mel – mesmo com esse último se tratando de um ingrediente pouco utilizado na cozinha da cantina.

Assim como no futebol, uma vida dedicada ao jogo de cintura.

Para Ana Paula, era importante saber escambar com os diversos mascates que abasteciam de forma desordenada, mas invariável, a cantina. Era uma espécie de delivery involuntário. Importantes, indispensáveis, mas em muitos momentos desnecessários. Como no caso dos limões sicilianos. Contudo, naquela quarta-feira a euforia se fazia de tal maneira que até o caminhão da distribuidora de bebidas parou na porta da cantina e descarregou dois pares de fardos de refrigerantes, Coca-Cola e H2O, respectivamente; além de um fardo de água sem gás e outro de água tônica. O funcionário da distribuidora arrancou os fardos do chão, jogou-os nas costas e entrou pelo corredor raquítico – que por incumbência se formou entre as mesas – parando quase dentro da cozinha.

Dona Sônia assustou-se, Ana Paula não entendeu.

– Não pedi nada na distribuidora, vocês se enganaram – disse ela dando às costas ao moço muito mais por necessidade em atender os pedidos da casa ainda cheia do que por falta de educação ou nervos (coisas que não se vê no seu cotidiano de trabalho).
– Não é possível, tá aqui a nota – insistiu o sujeito ao que mexia e remexia os papéis.
– Pode olhar, não deve ser nosso – completou Dona Sônia.

O moço não acreditou, continuou olhando as notas e afirmando que o pedido partiu dali. Ana Paula ponderou, deveria ser do restaurante em frente, especializado em espetinhos, explicou que aquela quantidade de bebidas não condiz com seu estoque, que é bem menor. Somente após um contato pelo aparelho Nextel com a distribuidora e depois de dar cabo ao mal-entendido, ele se fez por vencido: o pedido era realmente do outro restaurante.

A solução do imbróglio era apenas um alívio momentâneo. Se nenhum outro vendedor passasse até a hora de encerrar o expediente, nos próximos 80 minutos, era necessário preparar-se para o dia seguinte quando o fornecedor de queijos, um senhor negro, mais de 50 de idade, num modelo década de 1990 com a bandeira Fiat estacionado do outro lado da rua, adentrava a cantina nas primeiras horas com seus pacotes de parmesão inaugurando novamente a rotina de entregas forçadas à domicílio.

Na verdade, havia o lugar certo de comprar verduras, carnes e massas. E também bebidas, especiarias e outras mercadorias. Esse lugar era o supermercado, o sacolão, a mercearia, o atacadista ou até mesmo a distribuidora, onde Ana Paula fazia as compras para a sua própria casa. O que significa que os ingredientes utilizados na cantina eram os mesmos levados à mesa da família Seriacopi – inclusive, aqueles via fornecedores matutinos.

Idêntica falta de distinção na compra de produtos e mercadorias era gloriosamente empregada no trato com as refeições, pois os pratos lembravam e muito a tradicional “comida das mães ou avós”. Com sabor, tempero e preparo inigualáveis, existe ali uma combinação de simplicidade com uma explosão de paladar. Simplicidade quanto à composição do cardápio (carnes, massas, arroz, feijão, ovo, batata e salada); e paladar quanto ao sabor dos alimentos (sempre frescos, naturais e consistentes). É raro em restaurantes encontrar um arroz soltinho feito na hora, bem como um feijão carioca ou jalo graúdo, bem cozido, suculento e saboroso, com o caldo grosso e com gosto de feijão recém-saído da panela. Na Zona Oeste, é um dos únicos.

A concorrência lá, em resposta, ataca pelo viés contrário. Padarias estão com bufês self-service, fast-foods pipocam por todos os lados – principalmente nas extraordinárias praças de alimentação –, as temakerias deliveries fizeram com que os restaurantes orientais superassem o número de pizzarias, isso sem contar os famosos PFs ou PEs (Executivos) que deixam constrangidos – com seu desperdício exacerbado de comida – quem busca apenas uma pequena refeição (característica de consumo que deve ser levada altamente em consideração numa cidade onde os índices de obesidade são significativos e onde os habitantes são conscientes da importância de se adotar hábitos alimentares saudáveis).

Não se pode desprezar os vários restaurantes de primeira qualidade nos arredores da cantina, que ofertam pratos de degustação ímpar, contudo, a preços pouco convidativos. Da mesma forma que deve-se considerar que não experimenta-se arroz e feijão similares àqueles servidos no pé do morro. Um arroz e feijão que se destaca pelo uso equilibrado e sensato de sal, alho e óleo. Igual não há.

Convicto dessa premissa, um jovem que frequenta irregularmente a casa pediu o cardápio – já se passavam das 14h e algumas mesas ainda não haviam sido rearrumadas, por isso a falta do menu. Ele não demonstrou qualquer infortúnio com o horário, muito menos sentiu incomodar Dona Sônia, Ana Paula, o novo garçom e a turma da cozinha. Leu o cardápio inteiro por diversas vezes:

(Impresso)

Bife, ovo, arroz e feijão
Calabresa, fritas, arroz e feijão
Frango ao molho, fritas, arroz e feijão
Picadinho, ovo, arroz e feijão
Bife à milanesa, fritas, arroz e feijão
Filé de frango grelhado, ovo, arroz e feijão
Contra-filé, fritas, arroz e feijão
Filé de frango à milanesa, fritas, arroz e feijão
Filé à parmegiana, fritas, arroz e feijão

Mousse:
Limão e Maracujá
Manjar

Suco de laranja e limão
H2O
Coca 600ml
Tubaína
Água

(Manuscrito)

Pratos do Dia:
Filé de peixe
Pastel
Bisteca com couve e farofa

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