domingo, 20 de setembro de 2009

III

Já se passavam mais de três semanas desde a última vez que ele estivera na cantina. Não se lembrava de qual era o dia exato da semana, mas não se esqueceu da rabada com polenta a qual teve a grata satisfação de almoçar. Na ocasião, achou que faltou apenas algumas horas a mais de panela de pressão, contudo, aprovou em primeira instância a reprodução quase fidedigna do inconfundível prato de sua infância no interior de Goiás. Voltou para saboreá-lo.

– Que pena. E qual é o dia que vocês servem rabada? – indagou depois que ouviu a sensata explicação de Ana Paula.

Segundo ela, são dois, três ou quatro os pratos do dia e a cada dia as receitas são diferentes. Acontece de se repetir na sexta-feira, por exemplo, uma receita de quinta ou terça. Não tem regras, pois depende muito da matéria-prima disponível a partir dos fornecedores à domicílio ou dos que a própria Ana Paula procura. É tudo fruto de alguma oportunidade que ela vê e decide usar espontaneamente na cozinha para os clientes.

– Por isso, todos os dias temos pratos extras. Às vezes, coincide de você vir e ter rabada outra vez – encerrou a dúvida ao indicar um fígado acebolado que não integrava o cardápio, nem os pratos do dia, mas que poderia ficar pronto em 5 minutos.

Ao consentir com a sugestão, o jovem começou a observar os quadros, retratos, bandeiras e pôsteres ao seu redor. Se identificou com a foto sombreada da cantora Elis Regina, lembrou-se da sua mãe. Percebeu que a cantina possuía inúmeras diferenças em relação aos outros lugares que ele frequentava na Vila Madalena, em Perdizes, Pinheiros, na Pompéia e no Sumaré. A principal delas é que apesar das paredes abarrotas de imagens não havia uma única indicação da revista Veja recomendando o lugar. Daquelas indicações que padarias e lanchonetes, quando também creperias e bistrôs, fazem questão de emoldurar e apresentar como importante referência de avaliação. Desta forma, concluiu o jovem freguês, ao que tudo indica, o tradicional e respeitável semanário não passou por ali.

Comeu a salada, chegou o fígado acebolado, bebeu a Coca-Cola. Além dele, mais duas mesas separavam Ana Paula e Dona Sônia de outro turno encerrado com primazia, de mais uma tarefa cumprida. Eis que, por fim, penetra um cliente atrasado, conhecido da casa, ciente dos pratos que podem não estar no cardápio e pede nhoque. Ana Paula e Dona Sônia olharam-se, assentiram e disseram que sim. Aceitaram, pois não se desdenha quem prestigia a cozinha.

– Nhoque... vou ver o que tem de massa... – sorriu Ana Paula que num zás-trás voltou oferecendo conchinhas com recheio de ricota e espinafre.

Surpreso com a carta na manga, o atrasado, percebendo sobretudo a ausência de Miguel – que já havia negado-lhe a venda de bebidas alcoólicas no almoço – aproveitou para perguntar se não seria possível beber uma taça de vinho. Com um naipe desses no âmbito das massas, só faltava vencer o jogo.

– Claaaaaro que pode – disse Dona Sônia.

Ana Paula perguntou se ele queria o do galão de cinco litros ou o cabernet savignon argentino. Ficou com o último e mais uma água sem gás. O jovem que experimentou o fígado acebolado e mais outra mesa fecharam as contas e foram embora. Agora, restaram apenas duas. O novo garçom serviu a taça de vinho e a água sem gás, e Ana Paula atendeu os clientes ao lado que pediram sobremesas. Antes que questionassem, acrescentou que, além dos mousses de limão, maracujá e do manjar, ela tinha mousse de chocolate e arroz doce a oferecer.

– Arroz doce! – soou uníssono o pedido dos três satisfeitos fregueses.

Depois que todos foram embora e a equipe da cantina estava reunida apenas com São Judas Tadeu, o santo patrono das causas desesperadas e das causas perdidas na Igreja Católica Romana, cuja imagem repousa – com uma rosa postiça, a epístola e segurando a régua de carpinteiro – na parede à direita de quem está dentro do balcão, Ana Paula tomou nota para não se esquecer de comprar carne bovina. Ela se aprontou, pegou a bolsa, as chaves do carro e saiu. Na quinta-feira, os pratos do dia seriam estrogonofe e costela com batata. Quer dizer, isso sem contar o coringa que nunca consta no cardápio.

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