domingo, 20 de setembro de 2009

II

Sexta-feira é o dia dele empapuçar-se com a colônia pós-barba de patchuli, é nesse dia que nota-se o esmero de Miguel para consigo mesmo, é nesse dia que ele se entrega aos prazeres da barbearia antes de iniciar o término definitivo da semana de trabalho.

Chega à cantina impecável, unha feita, mocassim reluzente, anel no dedo. Então ele coloca o primeiro jaleco, o especial de se usar no fim de semana, e encaminha o segundo para lavar – na segunda-feira de manhã vai estar limpo, passado e cheirando amaciante – para ser usado outra vez de terça à quinta.

Vestido de primeiro jaleco, limpo, passado e cheirando amaciante, cabelo com brilhantina penteados para trás, barba feita e bigode acertado, Miguel sai desembestado entre as mesas. O rádio está sintonizado numa emissora de música popular e o ambiente está a fervilhar. Com o rosto a dourar como o filé de frango que está prestes a deixar na mesa de uma garota com os cabelos dreadlocks vibra e mantém-se de orelha em pé ao diálogo de seus companheiros que inevitavelmente vez por outra ao final de algumas explanações insistem em indagar:

– Lembra, Miguel? É verdade ou não é? – Duda e companhia colocam o amigo contra a parede a todo instante.

A resposta afirmativa vem de qualquer canto onde ele esteja, pois tornar-se parte integrante na conversa de seus companheiros é motivo de orgulho e regozijo. Sente-se reconhecido. Vê-se admirado por aqueles a quem ele dedicou esforço e atenção. Pode parecer algo contraditório com a crença católica de Miguel – que prega o dar e fazer o bem sem ver a quem e sem esperar receber em troca – mas ele busca um feedback constante do seu trabalho. Precisa muito disso, é uma aventura particular que carrega.

Além de todas essas características, sinceridade era sua marca registrada.

Quando o designer gráfico Cassiano Tosta, 32, elogiou a lasanha ao molho sugo que acabara de ter a abençoada oportunidade de degustar, Miguel foi enfático ao informar a fonte de tal preciosidade: uma casa de massas na rua Prof. Alfonso Bovero, no bairro da Pompéia. Um lugar onde os proprietários eram de origem italiana e que, segundo ele, vendia a melhor massa da cidade de São Paulo a preços acessíveis e com a maior diversidade de preparos.

– O molho é nosso, mas eles também vendem o molho pronto e separado – acrescentou ao designer enquanto era fitado com certa insatisfação por Ana Paula que, atrás do balcão, fazia às vezes de caixa.

Também pudera. Certo dia, o designer realmente seguiu a orientação e foi até à casa de massas. Num sábado a noite preparou um jantar a dois regado a vinho chileno de uva merlot e com sua mulher colocou a mão na massa. Recém-chegados às proximidades, eles residem num edifício na mesma rua e experimentaram alguns restaurantes das redondezas antes de montar cozinha no apartamento. Cassiano é econômico, irrita-o pagar mais que R$15,00 em uma simples refeição no almoço, valor que investiu ao pedir o prato de lasanha, sem contar o suco de laranja. Sua mulher, contudo, é mais prática, e almoça na cantina quando está atrasada e sem tempo para preparar algo para comer. Ela gosta da culinária da casa, principalmente o filé de peixe, mas não bebe o café.

Já o Cassiano não voltou mais lá – pelo menos para comer massas, não.

Miguel não se importa. Quando tudo está sob controle, sai até à calçada para dar bicadas ao movimento e – com brilhante discrição – as mulheres que trabalham no salão de beleza ao lado, senhoritas que mesmo não sendo suas freguesas fieis ganham a atenção distraída daquele senhor cujo nome está bordado no uniforme de trabalho.

Uma conferida visual mesas adentro atesta a tranquilidade da situação e ainda do lado de fora aproveita o sol para mexer de um lado para o outro o sapato de couro preto que recebera no final de semana anterior uma caprichosa camada de graxa. Se nota um embaço, passa a barra da calça no mocassim e acerta o brilho do calçado.

– Tudo bem Miguel? – perguntou a senhora de aparentemente 55 anos que entrou com sacolas de compras na mão.
– Tudo, e a turma lá na sua casa? – respondeu demonstrando intimidade ao emendar naturalmente uma pergunta a respeito da família dela.

Era conhecida na cantina, estava a entregar alguma mercadoria ou encomenda, ou vice-versa. Cenas como essa eram comuns e prosseguiam durante todo o almoço no entra e sai de clientes ou de conhecidos que puxavam conversa por ali.

– Ontem à noite tava cheio, viu – disse um homem de calça jeans, camisa de algodão e cabelo tosado ao entrar e pegar o embrulho para o almoço.
– Nossa, foi mesmo? Coitado... – comentou Dona Sônia.
– Sozinho aqui, ele corria para todo lado – emendou o homem enquanto passava o cartão do banco na máquina do Visa Electron.
– E quem eram os fregueses? – mostrou preocupação, Ana Paula.
– Só amigos, só amigos, tranquilo, só gente conhecida – explicou calmamente antes de agradecer e despedir-se de todos.

Ele se referia ao Paulo, irmão de Ana Paula e responsável pela abertura da casa após às 18h quando a cantina dá lugar um bar e se transforma numa verdadeira arquibancada do Palestra Itália. Nesse turno Miguel não está presente, entra o churrasqueiro Careca, e vende-se não só cerveja como todo tipo de bebida alcoólica e petiscos. Uma televisão é colocada no topo da geladeira que tem a bandeira de Portugal e jogos dos campeonatos em que o Palmeiras participa são compartilhados entre torcedores, amigos e outras pessoas. De manhã é possível ver a caneca do festival do chope promovido pela Mancha Verde escondida entre troféus, taças e flâmulas dos campeões do Brasileirão da Série B de 2002 e 2004, Juventus e Criciúma, respectivamente, além de uma do Boca Juniors. Visível no almoço, pertence ao turno da noite.

De manhã também falava-se sobre muitas coisas, mas o Palmeiras era sem dúvida motivo maior das manifestações de Miguel. Uma vez vitorioso após um confronto, elogiava as boas jogadas, reclamava do técnico em questão, o Luxemburgo, e chorava as oportunidades perdidas. Se o resultado fosse negativo não se ouvia paparicos, oxalá menção ao jogador mais guerreiro da partida mas em geral era crítica ferrenha para todos os lados sobrando sempre, é claro, para o juiz e auxiliares.

Aos empates com grandes clubes Miguel dava pouco crédito tanto a não elogiar, nem criticar, passava-se despercebido. Mas com clubes pequenos era imperdoável como na noite de terça-feira, 31 de março, em que a partida com o Oeste, lá no Estádio Ideonor Picardi Semeghini, em Itápolis, terminou em 1 x 1 e quase comprometeu a liderança no Paulistão 2009. Mas a vitória, no domingo seguinte, de 2 x 1 sobre o Botafogo, de Ribeirão Preto, dentro do Palestra consagrou os 44 pontos que garantiu ao Verdão de Miguel a cabeça da tabela antes de ingressar na semi-final e ser eliminado.

– Terminou cinco pontos a frente da gente, mas perdeu as duas para o Santos enquanto papamos o São Paulo nos dois jogos. Agora nós vamos sapecar o peixe lá na Vila este domingo e ser campeão no Pacaembu, no outro – falou com escárnio profético o cliente corintiano sentado com mais dois homens.

Miguel ouviu o comentário lastimável, soltou um tímido “é” e continuou a pulular de mesa em mesa. Não discordou, nesses casos não discordava. Além do mais era sexta-feira, estava feliz, na maior inteiração com Duda e Jacaré, e sabia não haver nada de mais em levar ao pé da letra em certas ocasiões aquela máxima de que o cliente tem sempre razão. Foi atender a senhora, com mais de 50 anos, mãe de três filhos, moradora da região e que frequenta o local desde a abertura em 1980.

No outro dia, sábado, um homem com menos de 40 anos almoçava com dois garotos: o filho e o amigo do colégio. Ambos voltavam da escolinha de futebol do Palmeiras. Miguel atendia-os com toda a atenção. O garoto amigo era um craque, uma promessa. Franzino, tinha a canela fina, os olhos arregalados e comia arroz, feijão, bife e fritas.

Miguel olhava-o diferente, parava por alguns instantes e ficava só observando-o; nas pupilas do português via-se um filme, fazia trabalho de vidente enxergando o futuro dentro de uma bola de capotão; a visão que prenunciava era a de um molecote, com a canela fina e os olhos arregalados, fazendo um espetacular gol de bicicleta para o Palmeiras na decisão final do Brasileirão de 2018, e dentro do Palestra Itália.

Com a casa lotada e contra o Corínthians, é claro.

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